





Mais informações, menos amarras
A transexualidade tem sido uma pauta presente nas mídias. Ainda bem. Mas a visibilidade não é o suficiente para informar e quebrar tabus. Ainda há muito caminho para percorrer num novo cenário em que ainda é preciso desvendar muitas coisas. Só com conhecimento é possível desconstruir preconceitos.
O artigo publicado esta semana no jornal O Popular traz questões muito pertinentes.
Por Paula Parreira
O Popular
A presença da goiana Tifanny Abreu na Superliga feminina de vôlei abriu de forma tímida a discussão no País sobre transgêneros e transexuais no esporte, um debate necessário e que precisa ser feito sem as amarras de preconceitos e egocentrismos. A ponteira é a maior pontuadora da competição nacional, uma das mais fortes do mundo, e alvo de todo o tipo de reações: apoio, solidariedade, compreensão, mas também ataque ou reprovação, inclusive de outras mulheres ligadas ao esporte que pratica.
Além do fato de ser transexual, Tifanny incomoda porque é boa tecnicamente e se destaca na competição. Se não liderasse estatísticas e tivesse desempenho apenas mediano, estar em uma liga importante de vôlei seria considerado apenas histórico e polêmico do ponto de vista das questões de gênero. Talvez tivesse mais apoio.
Tifanny é notável em um cenário naturalmente excludente, o esporte de alto rendimento. E sobre exclusão ela entende mais do que eu, você e qualquer outro que aponte o dedo para ela.
A jogadora teve coragem de admitir que já teve o preconceito que outros têm em relação a ela no esporte, pois acreditava que não poderia jogar vôlei entre as mulheres. Feita a transição de gênero, sonho de infância, achava que teria de arranjar outro emprego, outra profissão, outra fonte de renda. Passou anos buscando o que sonhava e juntando dinheiro para fazê-lo. Conseguiu perto dos 30 anos.
Quando passou a conhecer mais o assunto, o que ocorreu apenas durante a transição, uma porta se abriu no horizonte de Tifanny. O Comitê Olímpico Internacional (COI) sequer exige a cirurgia de mudança de sexo para que um atleta atue. São necessários o controle hormonal e a documentação no gênero correto.
Conhecer o assunto é o primeiro passo para um debate justo. Como há poucos transexuais no esporte, há poucos estudos sobre o tema. Menos informação, mais preconceito.
Tifanny nasceu Rodrigo em Goiânia, foi criada no Pará e rodou por ligas de vôlei pela Europa e pela Ásia, jogando entre os homens. Perto dos 30 anos, iniciou a transição de gênero. Em 2017, fez história, e polêmica, na 2a Divisão do vôlei italiano ao atuar pelo Golem Palmi. Em 2018, aterrissou na Superliga.
Tudo gira em torno da questão de justiça na competição. É preciso deixar a disputa equilibrada. As determinações mais atuais do COI são de 2015 e, em um campo novo, mudanças ao longo dos anos, por causa de descobertas e conhecimento, são esperadas e naturais. As exigências podem mudar a qualquer momento, o aspecto hormonal talvez não se sustente como única exigência para transexuais no futuro.
Mas o mais importante é que a discussão tem de ocorrer sempre no sentido de incluir, e não excluir Tifanny e qualquer outro atleta transexual. É infame a sugestão de que a transição de gênero para obtenção de sucesso no esporte pode se tornar um mercado.
Esse tipo de opinião só atrapalha e esmaga o histórico de luta, dificuldade, opressão e angústia das pessoas que sofrem por ter nascido em um corpo que não reconhecem. Não é correto entrar em um debate tão sério só para despejar preconceitos.
*Publicado originalmente no dia 12 de fevereiro de 2018, em O Popular.
Evento acontece de 20 a 21 de março no Riocentro
A advogada Chyntia Barcellos, do escritório Edson Barcellos Sociedade de Advogados, LEXNET Goiânia, foi convidada para palestrar no Super Rio Expofood – feira que reúne os setores de Supermercado, Panificação, Hotelaria, Franchising, Conveniência e Restaurantes do Estado do Rio de Janeiro. Chyntia estará no dia 21 de março (quarta-feira), às 16h30, no painel: Diversidade nas Empresas – Demitindo Preconceitos. No mesmo bloco estará Leyla Nascimento, presidente do World Federation of People Management Associations (WFPMA), a Federação Mundial de Recursos Humanos, e que será a mediadora, Fernanda Gentil, jornalista e apresentadora da Rede Globo e Karina de Andrade Neves, gerente do Carrefour.
Chyntia Barcellos, que também é autora da cartilha Demitindo Preconceitos já vem fazendo esse trabalho inovador com empresas nos principais Estados do país. Seu trabalho consiste em levar para a empresa e seus colaboradores importantes informações, com intuito de desmistificar tabus e esclarecer grandes detalhes acerca da diversidade sexual que está presente hoje em todas as relações de trabalho, tanto do ponto de vista interno quanto externo. Quem são seus colaboradores? Como eles se sentem? Seus direitos são respeitados? A empresa se preocupa? Como abordar essa questão? O que fazer? São algumas perguntas cujas respostas podem ser contempladas.
Informações sobre o evento
Local: Super Rio Expofood
Data: De 20 a 22/3 das 15h às 22h
Local: Riocentro – Av. Salvador Allende, 6555 – Barra da Tijuca
Pavilhão 4
Sobre Chyntia Barcellos
Especialista em Direito Homoafetivo, Famílias, Sucessão e em Métodos Extrajudiciais de Solução de Controvérsias. Membro da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero do Conselho Federal da OAB, e Presidente da Secretária de Direito Homoafetivo do IBDFAM-GO – Instituto Brasileiro de Direito da Família.
É sócia do escritório Edson Barcellos Advogados e da Rede LEXNET. Palestrante convidada em todo o país, autora da Cartilha ABC do Direito Homoafetivo e de vários artigos, com publicações nas obras “Métodos Extrajudiciais de Solução de Controvérsias” e “Aspectos Modernos do Direito Trabalhista Empresarial”, da Coleção LEXNET.
Mulheres de Campinas obtiveram liminar favorável; lei não prevê nenhum benefício à companheira de quem gerou a criança
Por Flávia Mantovani
Publicada originalmente pela Veja em 10 abr 2018
Quando as gêmeas Rebeca e Beatriz nasceram, há dois meses, foram direto para o peito das mães – isso mesmo, no plural. Elas são filhas do casal de mulheres Ana Paula e Rafaela Felipe Bahe, duas instrutoras de autoescola de 33 anos que recorreram à inseminação artificial para realizar o sonho da maternidade. Rafaela gerou os bebês e Ana Paula fez tratamento para conseguir amamentar junto com a companheira.Agora, elas continuam se revezando no aleitamento e no dia a dia com as filhas no apartamento onde moram, em Campinas. O cuidado conjunto tem sido possível graças a uma liminar que concedeu a Ana Paula um benefício ainda raro no Brasil: o direito de uma mulher tirar licença-maternidade mesmo sem ter dado à luz.No pedido, a juíza leva em conta o fato de que Ana Paula também é mãe dos bebês, como prova a filiação na certidão de nascimento, e os amamenta. O INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) entrou com recurso, a liminar encontra-se suspensa e agora as advogadas do casal recorreram dessa suspensão. O julgamento de fato ainda não foi marcado.“A gente combinou que se fossem dois bebês, eu iria ajudá-la”, diz Ana Paula, que procurou uma enfermeira especialista em amamentação para fazer o tratamento. Quando a companheira estava com cinco meses de gravidez, ela passou a usar anticoncepcional e um medicamento para o estômago que tem como efeito colateral aumentar o nível de prolactina, hormônio responsável pela produção do leite materno.“Foi uma espécie de gravidez induzida. Quando começaram a sair as gotinhas, fiquei toda feliz”, lembra Ana Paula, enquanto dá entrevista na sala de casa, em frente a um enfeite de bolo com duas bonecas vestidas de noiva, lembrança do casamento civil delas.
Rafaela e Ana Paula estão juntas há nove anos. A decisão sobre quem engravidaria foi fácil: apenas Rafaela tinha essa vontade. “Nós duas queríamos ser mães, mas eu não tinha o sonho de gerar”, diz Ana Paula, que buscou um doador de sêmen com características físicas parecidas com as suas.
“O nariz da Bia é meu, o da Rebeca é da Rafa, mais chapadinho. Escolhemos um doador com cabelo castanho claro, olhos castanhos esverdeados, porque o meu olho é de um castanho mais claro e o da Rafa, mais escuro, então juntando os dois ficaria parecido com o meu”, explica. “Só a altura que quis diferente, 1,80 metro [ela tem 1,54 metro]. Sofri bullying por causa disso, minhas filhas vão sofrer também?”, diz, rindo.
A chance de terem gêmeos era de 5%. Rafaela levou um susto quando recebeu a notícia de que eram dois bebês. “Mas hoje dou graças a Deus. Essas duas são minha vida. É um amor tão grande que chega a dar medo, só sendo mãe para entender.”
A dedicação que os bebês exigem também é grande. “Fiquei em pânico pelo fato de a Paulinha ter que voltar a trabalhar. Minha mãe não mora em Campinas, minha sogra cuida da mãe, que está doente. Como eu faria sozinha com as duas bebês? Às vezes berram juntas, como eu ia dar conta de amamentá-las?”, questiona.
O casal trabalha na mesma autoescola. Quando elas decidiram ter filhos, avisaram os patrões e tiveram o apoio deles, inclusive quando anunciaram que tentariam a licença-maternidade dupla. “No começo, eles me deram férias até sair a liminar”, diz Ana Paula. Agora, elas aguardam a decisão do juiz sobre o recurso e o julgamento do caso, que ainda não tem data marcada.
O que diz a lei
A lei que rege a previdência social não prevê nenhum tipo de licença para a mãe que não gerou o bebê. Segundo a norma, o salário-maternidade deve ser pago somente à mãe biológica e “não poderá ser concedido o benefício a mais de um segurado” dentro do mesmo processo.
As advogadas do casal, Ana Carolina Hinojosa de Oliveira e Tereza Zabala, sustentam que essa lei está desatualizada. “Não condiz com a realidade da nossa sociedade hoje. E o direito precisa se adequar à sociedade. Já chegou a hora de a lei da Previdência mudar. Estamos nos pautando na lei maior, que é a Constituição Federal”, diz Oliveira.
Ela é presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de Campinas e Zabala, vice-presidente da mesma comissão.
Ambas alegam que em primeiro lugar vem o bem-estar da criança e a importância da convivência familiar nos primeiros meses de vida. Elas citam o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Declaração Universal dos Direitos da Criança, da ONU (Organização das Nações Unidas).
Dizem também que não faria sentido pleitear uma licença equivalente à paternidade, já que se trata de duas mães – que, além de tudo, estão amamentando. Também não consideram injusto que os dois membros do casal tenham direito a 120 dias, diferentemente das famílias heterossexuais.
“Existe uma mentalidade antiga de uma igualdade formal, de que todos são iguais perante a lei. Mas existe um direito inovador que fala de uma igualdade respeitando as diferenças, que ampara as pessoas em sua pluralidade. Estamos falando de minorias vulneráveis, que sofrem discriminações e precisam de proteção”, afirma Zabala. “A igualdade é você respeitar as diferenças. Essa é a igualdade maior”, completa Oliveira.
Além disso, as advogadas lembram que as duas clientes são seguradas da Previdência. “Ambas recolhem, ou seja, não vai haver nenhum prejuízo para o INSS. Se pensarmos na proteção da família e dos bebês, o INSS fica em segundo plano”, diz Zabala.
Consultado por VEJA, o INSS informou que as regras em relação ao salário-maternidade independem da orientação sexual da segurada. Sobre o caso de Campinas, informou que havia implantado o benefício “devido a uma decisão proferida em tutela antecipada”. “A Procuradoria Federal que representa o Instituto recorreu da decisão e, liminarmente, foi concedido efeito suspensivo à decisão original. Assim, o INSS cessou o benefício que havia sido concedido. No momento, o processo ainda aguarda pronunciamento final de mérito por sentença.” O órgão afirma não ter um levantamento que mostre se houve no passado outros benefícios concedidos com o mesmo efeito.
Casos anteriores
Um caso parecido com o do casal de Campinas ocorreu em 2014, quando uma moradora de Brasília conseguiu na Justiça a licença-maternidade após sua companheira ter trigêmeos prematuros. O advogado dela, Tulius Fiuza Lima, afirma que não encontrou nenhuma decisão semelhante na época. “Foi o primeiro caso no país, que eu tenha conhecimento”, diz.
Depois disso, Lima foi procurado por outro casal de mulheres em 2017 e, mais uma vez, conseguiu o benefício. A servidora pública Camila Mello, 35, teve direito a passar 180 dias cuidando da filha Laura, que teve com a bancária Ana Paula Mello, de 37 anos.
Laura, de 6 meses, foi gerada por Ana Paula, mas tem o material genético de Camila, cujos óvulos foram implantados na esposa. Assim como no caso de Campinas, as duas mães amamentam.
“Foi um ganho poder ter compartilhado com ela esse período da primeira infância. Ela não faz distinção, é muito apegada a nós duas. E conseguimos manter o aleitamento exclusivo por seis meses”, comemora Ana Paula.
A decisão, por enquanto, é temporária, por meio de liminar, pois o processo ainda não foi a julgamento. “Como não existe legislação sobre isso, fomos brigar pelo que achávamos que é justo. As duas somos mães, não achamos justo só uma ter o direito de ficar com a Laura nessa fase tão importante”, diz a bancária.
Para o advogado Tulius Lima, a tendência é que mais mulheres lésbicas busquem o benefício e que a Justiça reconheça a situação como diferente de uma relação heterossexual. Ele diz que, depois das duas vitórias na Justiça, já vem sendo procurado por outros casais na mesma situação.
Presidente da Comissão de Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB, Maria Berenice Dias também acredita que a procura pela licença-maternidade dupla vai crescer, principalmente depois de uma resolução de novembro de 2017 que passou a permitir o registro de uma criança no nome de mais de um pai ou uma mãe diretamente no cartório. Até então, era preciso entrar com uma ação judicial.
‘Balde de água fria’
Segundo Ana Lúcia Lodi, fundadora da Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas, atualmente é mais comum que a companheira de uma mulher que engravida peça o equivalente à licença-paternidade (que é de cinco ou de vinte dias, dependendo da empresa).
“Enquanto a mãe que gerou se recupera do parto, ela precisa que a companheira dê suporte. Faz-se uma analogia com os casais heterossexuais e leva-se em conta o interesse da criança. Às vezes nem precisa entrar na Justiça, algumas empresas já concedem diretamente”, afirma.
Lodi é pioneira no Brasil em buscar tratamento de reprodução assistida para ter filhos com uma mulher – ela e a ex-companheira são mães de um adolescente de 16 anos e de uma garota de 12. Ela acredita que é mais difícil justificar o pedido de uma licença-maternidade nesse caso. “Fica parecendo um privilégio em relação a casais heterossexuais, a não ser quando as duas amamentam, aí é outra história”, afirma.
Mas nem a licença-paternidade foi concedida à funcionária pública Tatiane Viana, 34, quando sua mulher, a analista de recursos humanos Bárbara Almeida Merlin, 36, engravidou de Leonardo, que hoje tem 9 meses.
Ela tirou cinco dias para cuidar das questões burocráticas e da recuperação pós-parto de Bárbara, enquanto aguardava a análise de seu pedido administrativo para obter o benefício. A resposta – negativa – veio oito meses depois. Os cinco dias foram considerados faltas injustificadas e descontados de seu salário.
“Depois de um tempão, do nada, chegou a carta. Foi muito dolorido. E aconteceu bem agora que estou desempregada, esse desconto caiu como um balde de água fria”, diz Bárbara.
Ela conta que ficou surpresa com a facilidade para registrar a criança em nome das duas. Também não houve dificuldade para incluir a esposa em seu plano de saúde. Mas, na hora de pedir a licença, o cenário foi outro.
“A Tati ficou três dias no hospital. Quem é que ia correr atrás de toda a burocracia? A licença não é para ficar em casa, descansando, é para resolver questões importantes”, afirma.